Joshua Benoliel
«Já cá tomara eu tar casada!»
Menino pequeno entre gente grande durante muitos anos, cedo me habituei a ouvir as histórias dos mais velhos. No tempo da «estrada de macadame» era assim: sem luz eléctrica, sem rádio, sem televisão, sem cinema, as histórias eram contadas de boca em boca à lareira ou nos trabalhos do campo, pelos mais antigos da família. No meu caso, ouvinte atento, lembro-me de diversas histórias, uma delas passada com um grupo de mulheres na Casa Grande – o outro nome da Quinta. A protagonista era uma rapariga nova, a mais nova do rancho que, tão iludida estava com a mudança próxima do seu estado civil, não se cansava de dizer: «Já cá tomara eu tar casada!» Quando as outras, todas casadas e mais velhas, lhe perguntaram porquê, ela respondeu: «A gente depois de casar já não anda os dias fora!». Ela não percebia a evidência de que todas no rancho da Quinta eram casadas. Olhava mas não via. A cegueira da paixão não deixava.
A minha avó Flauta contava uma história a propósito dos casamentos que metia um aprendiz de carpinteiro do meu avô Zé Penas e do seu amigo Zé Lourenço das Relvas. Ao princípio o rapaz andava triste porque no primeiro fim-de-semana trouxe a ceira com a ferramenta da Malasia para Santa Catarina mas com pedras; a ferramenta ficou na casa do dono da obra. Era uma brincadeira habitual que todos faziam a todos, uma espécie de baptismo. Mas aos poucos esqueceu a brincadeira dos mais velhos e começou a desabafar as coisas da sua vida com aqueles dois homens já feitos e com filhos da sua idade. Aquilo começava sempre da mesma maneira:
«Tio Zé Lourenço, tenho andado cá a pensar, não sei se me case, se não me case… O que é que vocemecê diz?» Respondia o Tio Zé Lourenço: «Atão casa-te!».
Pouco tempo depois ele dizia: «Tio Zé Penas e se vem aí um Inverno rigoroso, que nos obriga a perder dias e dias?» Respondia o meu avô: «Não te cases, atão!»
Voltava ele à carga: «Vocemecê diz bem mas o pior é que um homem solteiro é um maltês!» Saltava o Tio Zé Lourenço: «Atão casa-te!».
Mas o aprendiz não desistia: «E se a minha patroa for da raça de ter um rancho de cachopos?». Respondia o meu avô: «Não te cases atão!».
Nova pergunta do rapaz: «E quando a minha mãe fechar os olhos? Quem é que me cozinha umas batatas e me cose uns botões?». Respondia o Tio Zé Lourenço: «Atão casa-te!» Mas o rapaz estava imparável: «E se eu me casar com um estupor que se porte mal? Já viu, Tio Zé Penas, a figura que um homem faz?» E logo o meu avô: «Não te cases atão!». Nova pergunta do aprendiz: «E se eu ficar solteiro toda a vida e tiver uma doença? Chamo o doutor Bertolino mas quem é que me trata?» Dizia o Tio Zé Lourenço: «Atão casa-te!». Mas ainda não chegava, ele voltava à carga: «Você diz bem mas se for ela a adoecer? Chamo o doutor Bertolino mas tenho de perder tempo a tratá-la e deixo de ganhar a jorna. Já viu?». Respondia o meu avô: «Não te cases atão!»
Esta é uma história sem fim porque se pode sempre acrescentar uma pergunta. Quando passo na Malasia lembro-me logo do aprendiz e da bonomia do Tio Zé Lourenço das Relvas. Mais expansivo, o meu avô dizia: «Ah fado dum ladrão!». Tantos anos depois a minha única certeza relativa é a que escrevi num poema – «Todos dormimos sozinhos / mesmo em cama de casal».
O meu agradecmento ao José do Carmo Francisco pela partilha desta crónica saborosamente saloia, publicada na sua rubrica Estrada de Macadame na Gazeta das Caldas.
4 comentários:
é uma crónica deliciosa, sobre um dos muitos dilemas da vida que enfrentamos...
o que é facto é que as pessoas casam cada vez menos...
As pessoas casam mesmo não casando. E o que vale é que se garantem, divorciando-se e voltando a casar tantas vezes quantas forem as necessárias.
Casam, sem dúvida que casam! Ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo não seria um tema fracturante e actual como todos sabemos que é.
- Isabel X -
É caso para dizer «Não te cases atão!» JCF
Se é entre pessoas do mesmo sexo não é casamento, é outra coisa qualquer. Podem chamar-lhe tudo menos casamento. Safa!
a)JCF
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