RAMALHO ORTIGÃO
"Torres Vedras, 3.ª Feira [1898?]
QUERIDA EMÍLIA: Como te disse fui com efeito às Caldas no sábado. Tinha projectado voltar no rápido de 2.ª Feira às 7 1/2 da manhã, mas era tanta a gente que regressava a Lisboa nesse comboio, incluindo Bracelinhos, Galveias, etc., que resolvi evitar a barafunda, vindo no comboio da noite e chegando aqui ontem às 9 horas como fiz. Gostei muito das caldas. A terra é efectivamente linda, apesar de mal tratada, é muito fresca. A jarra de Bordallo é inteiramente uma* bela peça para concurso de cerâmica porque não há dificuldade q. nela se não ache resolvida. Como composição decorativa, no ponto de vista puramente estético, é uma obra muito defeituosa, excessiva, complicada, destituída absolutamente das condições fundamentais de uma obra de arte, que são a ponderação, a harmonia e a lógica de conjunto. Quando se reflecte nos fins para que teria sido feita uma tão gigantesca coisa não se adia se não isto: que foi feita unicamente no intuito pouco poético e extra-artístico de entupir de admiração os basbaques. O que mais que tudo me sensibilizou profundamente, foi a orquestra das ocarinas constituída pelos rapazes da fábrica com os instrumentos de barro fabricados e afinados por eles mesmo. Os músicos são apenas oito e tocam todos por música. O mais especial da instrumentação são as grandes ocarinas do tamanho de abóboras, que é preciso segurar ao pescoço por meio de uma correia, e que tem um belo e cheio som, grave, corno o mais grave de um órgão. O efeito de harmonia é inesperado, grandioso e magnífico. O Bordallo para me fazer surpresa mandou-os tocar sem me prevenir e inesperadamente numa sala contigua àquela em que eu estava! Fiquei estático, com o coração a bater, e o calor das lágrimas nos olhos! Podes participar a Bertha que o Santo António que ela encomendou está quase pronto, e de certo ficará pronto de todo no barro esta semana. No sábado, à minha chegada, os hotéis em Caldas estavam ainda cheios. Eu fui - já se sabe - para a galinha, que não tinha quartos no hotel, mas que me deu uma casa próxima, que eu unicamente habitava, e de que trazia no bolso a chave da porta da rua. Muito agradável como instalação. Serviço muito pontual e cozinha excelente. De muito boa vontade ficara lá mais tempo. Muitos homens meus conhecidos, e com excepção de bastantes espanholas, senhoras deselegantes e finíssimas. Recebi a tua carta escrita no sábado em que me dizias que a Bertha estava em Cascais e que ias lá passar o domingo. Ainda não tive com os Casimiros desde que vim para as Caldas. Trouxe da fábrica do Bordallo algumas pequenas peças muito bonitas. Hoje está aqui imenso calor e houve há pouco um pequeno abalo de terra. Queira Deusa não fosse mais violento em outros sítios! Saudades a todos e abraços do teu amigo
Ramalho"
*Jarra Beethoven
[Cartas a Emília. Ramalho Ortigão. Introdução, selecção, fixação do texto, comentários e notas Beatriz Berrini. Lisóptima Edições / Biblioteca Nacional. MCMXCIII. ISBN 9712-9394-06-7.]
1 comentário:
Adorei ler...
(...) A terra é efectivamente linda, apesar de mal tratada, e muito fresca (...)
O dr. Costa devir ler esta preciosidade, tão actual, pois a beleza mantém-se, tal como o mau tratamento...
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