Cavacos das Caldas
CAVACOS DAS CALDAS II

DICIONÁRIO GRÁFICO BORDALIANO

alguns livros, cerâmicas, belos gatos e algo mais...



segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O Garrido Espectáculo dos Mercados Caldenses

ALBUM DAS CALDAS N.5 – 1934
Director e Editor: J. Fernandes dos Santos
Composição e Impressão: Tipografia Caldense

«O garrido espectáculo dos mercados caldenses»

«São de criar saudades estas manhãs de verão – e porque não dizer manhãzinhas se tudo em redor é suave e calmo e terno nos campos ainda orvalhados e sempre frescos dos arredores.

Vê-se acordar o Sol num estremunhamento preguiçoso em berços de cambraias transparentes, nuvens finas, que não são nuvens, vendo bem, e é apenas a névoa azul e delicada do alvorecer que lentamente se desfaz e evapora. Há um perfume raro e estranho, mais entendido pela vista que sentido pelo olfacto. É o bucolismo dos pinheirais muito quietos em filas no horizonte, da mancha dos laranjais opulentos dos frutos luminosos em conjunto com rectângulos verdes das hortas, com as árvores velhas dos pomares e a cabeleira farta das searas. De quando em quando sardinheiras e papoilas selvagens a espreitar entre a rama rasteira dos batatais na intimidade dos malmequeres miudinhos, confetti dos campos, que escondem entre eles o bom agoiro do trevo de quatro folhas. Passa o melro triste na distância e sobe dos casais, num jeito de asas, o fumo das chaminés branquinhas.

E assim, de alma arejada no convívio puro da natureza, o meu amigo «saloio» e a família descem por carreiros estreitos no terreno e vêm formar na estrada, no desfile de cor e rico pitoresco a caminho do mercado na Praça Velha.

Burritos pachorrentos carregados com os frutos da novidade dos campos e trazendo no alto, sobre o dorso entre os alforges, a figura graciosa e gentil da moça aldeã que mostra nas faces o anúncio da saúde, nos olhos o alvoroço ingénuo da festa prometida e sempre um sorriso ou uma cantiga na boca fresca que costuma beijar, em horas de sede durante a faina, o curso cantante dos riachos límpidos.

E as saias azuis, rodadas como as das bonecas, aventalinhos de gosto rústico, e saborosos colos, acompanhando em tremuras discretas o andamento baloiçado do burrito chocalhando e feliz no paganismo delicioso do quadro.

Horas depois é ainda o Sol que comanda, lá de cima, o espectáculo vibrante e inquieto do mercado na cidade. Brinca no vidrado rubro dos canjirões e das vasilhas, dos tarros e alguidares, acaricia as maças vermelhas e carnudas, os matacões rosados, a epiderme verde-mar das melancias, em pilhas junto das toalhas duma alvura de paramento, onde repousa, sob toldos com riscas amarelas, o oiro quente do pão de milho, como imagem de altar em festa do povo. Faíscam lampejos esbranquiçados os almudes, os baldes e botijas de latas expostas mais abaixo. Como enormes flores exóticas, no caprichoso colorido do cenário, destacam-se os grandes chapéus azuis, de varetas compridas, e em amostras cuidadas e doce regional e os cestos do tremoço são tentações infantis.

E o barulho rumorejante é de ritmos ensaiados entre a cadência das ondas ali perto e o chalrar da passarada dos caminhos em volta.

Que linda coisa o mercado!

De vez em quando um harmónio, um coro de vozes em liberdade, gargalhadas mais fortes, o chiar estridulo dos carros de bois tentando hinos de alegria e de saúde que ficam em sussurro harmonioso na sinfonia da tarde de domingo.

E já o Sol se despede.

Faz-se o regresso, organiza-se o cortejo vistoso e belo a caminho dos casais e das aldeias. Levam compras os meus amigos «saloios». Os alforges voltam novamente cheios. É o peixe, oferta do Mar, os embrulhos dos mercados, loiça de utilidade para o lar e no chão, levantando poeira doirada da estrada, um grupo de leilões traquinas e farejantes, sempre em corridinhas em busca do vulto farto do seio materno que segue adiante entre grunhidos alarmados.

Então os «saloios» cruzam com outras figuras do mercado. São as varinas, grupos escuros em contraste, saia negra pela cabeça, empoleiradas em cachos, formado conjuntos tristes, trágicos, como se a alegria do domingo não contagiasse as almas que só entendem as ondas e só com elas conversam seus mistérios e confidências.

Na cidade o mercado desmancha-se como um arraial. O domingo finda. E ainda o Sol está beijando num último e demorado adeus o campanário bonito da torre da igreja.

Os turistas passam talvez o dia à procura de castelos históricos e de praias famosas. E é pena. O espectáculo do mercado devia estar em todos os guias e convites como atractivo principal para quem procura a distracção e a felicidade.»

Luiz Teixeira  

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