"A cabeça de um escritor é um sítio inabitável, cheio de sombras negras que se devoram umas às outras, remorsos, fantasmas, dores, insignificâncias em que não reparamos e ele repara, sensações, luzes, criaturas sem nexo. Usam o papel para ordenar este caos, vertebrar o desespero, dar ao ilógico uma coerência lógica e mostrar o nosso retrato autêntico em cacos de espelho, fundos de poço trémulos, superfícies convexas em que temos de emagrecer por nossa conta. Não se pode estender a mão a quem lê, tem de se caminhar sozinho num nevoeiro aparente em que, a pouco e pouco, as coisas se arrumam nos seus lugares. Em nenhum bom livro há personagens e história: quando muito aparência de personagens e história, usadas para tornar mais clara a vertigem do que somos. Tudo se passa no interior do interior e portanto não devia haver cursos de escrita criativa (um paradoxo de termos) mas de leitura criativa. Conheço menos bons escritores do que bons leitores, um bom leitor é uma espécie muito rara. Um autor do século dezanove dedicava os seus trabalhos aos felizes poucos,expressão roubada a Shakespeare (we few, we happy few, we band of brothers) capazes de nadarem ao seu lado em águas muito escuras e de regressarem à tona de mãos cheias.
Um livro é mais uma orelha que uma voz onde, no fim de contas, é o bom leitor quem conversa.O livro escuta. As páginas são ouvidos pacientes que nos guiam através da liberdade do silêncio, onde as nossas frases se reflectem e regressam com um sentido novo. O bom leitor só recebe na medida em que dá e a qualidade da obra depende desta troca constante, do fluxo e refluxo das emoções partilhadas. Temos de ser um agente activo do livro, fazê-lo nosso até que se torne, como queria Rilke de quem não sou admirador, excepto em raras passagens das Elegias, sangue, olhar e gesto. Se não for assim é uma comédia de enganos, um passatempo inócuo como quase tudo o que em Portugal se impinge, porque a maior parte dos editores ou são ignorantes ou são vigaristas, oferecendo ao público pacotilha impressa: um bom editor, tal como um bom leitor, é mais raro que um bom livro. Uma editora comercialmente bem sucedida é má, ou então tem de fazer compromissos. A casa alemã onde estou, por exemplo, possui um catálogo honesto, dividido em duas partes, literatura e best-seller. O argumento temos de pôr as pessoas a ler é idiota: o que temos é de ensinar; pessoas a ler. Até Lenine compreendia isto, ao afirmar que a arte não tem de descer ao povo, é o povo que tem se subir à arte. Claro que não é apenas um problema português, é um problema universal. Pasmo com as listas dos tops de ficção, dizem elas, quando a ficção não existe a não ser nas obras rasteiras. Se me dissessem que escrevia ficção sentia-me insultado: ficção que tolice, é o mundo inteiro que a gente mete entre as capas de um livro. Vende menos? Decerto mas há-de vender sempre. Se tivermos lado a lado, à nossa frente, Camões e o jornal, a tendência imediata é pegar no jornal, mas o jornal desaparecerá amanhã e Camões fica. Chamo jornalismo, explicava Gide, ao que é menos interessante amanhã do que hoje. E depois a Arte não é um desporto de competição: o editor que ponha numa cinta, por exemplo cem mil exemplares vendidos, ou julga falar de sabonetes ou não é um editor. Se o livro for bom há-de vender muito mais do que isso: quanto terá vendido Ovídio até hoje? É apenas uma questão de tempo, porque os bons leitores existirão sempre, ainda que poucos. O que me aborrece na Arte são os comerciantes que giram em volta dela, sem lhe tocar, porque tiram o seu alimento do efémero. Faz pouco tempo comecei uma biblioteca na empresa onde estou. Tolstoi foi o primeiro: ao receber o livro impresso reparei que as últimas três páginas eram propaganda a lixo. Como se pode, no fim de um livro de Tolstoi, fazer aquilo? Desonestidade? Ignorância? Não faço ideia de quem é o responsável mas devia ter sido fuzilado no berço: Tolstoi de mistura com livros de cozinha e ficções. Recomecei a colecção: até agora não repetiram a indignidade. Pergunta: - Como vão os livros da biblioteca?
Resposta:
- Pingam
e ainda bem que pingam. Se vendessem às grosas é que ficava alarmado. Os bons livros são para pingar eternidade fora: o Mondego começa gota a gota; a água suja basta virar o balde e encharca-nos. A água do balde acaba logo. O Mondego não tem princípio nem fim.
- Pingam.
e que maravilha pingarem. À força de pingarem hão-de engrossar irrestivelmente, enquanto os baldes se enferrujam, amolgados, num canto do jardim.
e o que interesse
(volto a Gide)
o amanhã? A gente vive no hoje, pá, o Horácio que se dane. Que se dane a Coroa, o que vale são as coroas e essas já cá cantam. O problema é que, se alguma nova editora aborda a minha agência, não começa por falar em dinheiro: fala nos nomes do catálogo. Todos eles pingam. Mas dão prestígio a uma Casa. Respeito demasiado o meu trabalho para o deixar à venda numa loja de trezentos.”
Visão, 19 de Agosto de 2010
2 comentários:
quando "o meu nome é António Lobo Antunes", até se pode cuspir na sopa do "patrão", que se está borrifando para as ideias do escritor, quer é vender livros, como vendia "big-brothers" na TVI...
e em alguns aspectos, ALA está errado, como na citação de Lenine...
Dou razão total a António Lobo Antunes que denucia o sistema, fazendo parte do sistema, por ser quem é, claro, mas que podia escolher não o fazer, não o denuncuiar desta forma clara, honesta e corajosa. Esta crónica tem um valor todo especial por isso mesmo.
E bem escrita como ele só. Lembrei-me logo de uma impressão que tive, muito forte aliás, quando lia "Ontem não te vi em Babilónia" e que me levou a tomar um apontamento que diz:
"Que milagre é este? Parece que o livro se está escrevendo enquanto o leio, que é ao lê-lo (por lê-lo) que o livro se escreve. Que é a leitura que produz a escrita."
A impressão pareceu-me tão real que eu tive receio de parar d ler e que o livro (por isso) ficasse incompleto.
São livros que vivem e cuja leitura é vida. São livros vivos, são a vida, ou arte, se preferirem.
- Isabel X -
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