Um quimono de seda estampada, de um luminoso verde seco, contrastado por grandes crisântemos em plena floração, envolve-o.
Elegantemente traçado, as pregas caem com suavidade em torno da sua bem acentuada rotundidade.
Notáveis as suas socas, num discreto tom níveo e de uma altura a exigir um contínuo exercício de instável equilibrismo.
E ainda não fizemos referência ao carrapito, apanhado no alto do cocuruto da cabeça e enfeitado com qualquer coisa de semelhante a um carapuço encimado por uma bolinha amarela de onde parte uma pequena e frágil pena.
Repete-se: chiquérrimo, é o mínimo que se pode adjectivar.
Um pormenor de não somenos importância: a fulgurante visão de uns tornozelos bem torneados, sob uma pequena prega do quimono que descai em jeito de cauda.
Quem, senão ele, o grande senhor da sátira e da caricatura, Mestre Rafael Bordalo Pinheiro?
Rafael apresenta-se distintíssimo, primoroso e elegantíssimo na capa do “Almanaque do António Maria para 1882/1883”.
Não está sozinho; acompanha-o, de um lado, Guilherme de Azevedo[2] que enverga um quimono em tons de vermelho e que num toque de grande distinção, se abanica com um colorido leque em forma de coração.
Do outro lado, o seu filho Manuel Gustavo,
[3] com um ar ligeiramente comprometido, observa-nos de revés. Alto e magro, veste o seu quimono com a elegância profissional de um manequim.A marcar o desenho, cortando-o diagonalmente, um grande pincel, a mais eficaz ferramenta de trabalho de Rafael.
Constituem o grupo perfeito a convidar-nos a folhear sem pressas este Almanaque, cuidadosamente impresso na Tipografia da Empresa Literária Luso-Brasileira. Acedendo ao convite, viremos então as folhas amarelecidas pelo tempo, à descoberta de algo que nos surpreenda.
Logo ali, na página de rosto, uma ilustração que nos apanharia em flagrante incredulidade, se não conhecêssemos Bordalo como já o conhecemos.
Rafael, políticos e gatos; muitos gatos. Quais sombras chinesas os desenhos surgem a negro sobre um fundo incolor.
Enquanto Bordalo empunha o seu terrível pincel, pronto a desenhar tudo e todos, as restantes figuras como que deslizam ao longo da página num enquadramento harmonioso.
Nota-se um pequeno gato – será ele um Pires? – a saltar na ponta do pincel de Bordalo, numa atitude provocatória, como que a incentivá-lo a escrever, a ilustrar, a ridicularizar, a satirizar e a gracejar com o mundo que os rodeia.
Mais umas páginas adiante, percorremos os diferentes meses do ano, ilustrados com desenhos alegóricos e eis-nos chegados ao mês de Julho.
Eis a surpresa! Que mês este! O mês das Caldas!
Ao centro, em traço ténue a silhueta de Augusto Maria Fernando Carlos Miguel Gabriel Rafael Agrícola Francisco de Assis Gonzaga Pedro de Alcântara Loyola, Sua Alteza o Infante D. Augusto que, no dizer de Rafael Rimuito,
Habitual visitante das termas da moda, Rafael realça essa ligação caldense da real figura.
Ao cima da página, a dança da bicharada: lagartos, lagartixas, rãs, sapos, frente a frente marcam o passo com acerto.
À esquerda, um jarrão tipicamente caldense decorado com uma esguia cobra – espreguiçando-se ao longo do bojo - uma rã e uma parra; na tampa, em sono profundo e enroscada sobre si mesma, outra cobra.
Em baixo, um prato musgado onde é visível mais uma cobra e outro lagarto.
À direita, um grande vaso, de largo bocal, e em cujo bojo se encontram inscritos os diferentes dias do mês e respectivo padroeiro religioso. A finalizar, uma cobra move-se ao longo da página contornando o bocal e parando ante a palavra Caldas.
Sentir-se-á fascinada pela importância da terra ou simplesmente cansada de tanto deslizar?
À data em que este Almanaque é publicado, Bordalo faz a sua vida por Lisboa, publica “O António Maria”,[6] visita a Livraria Bertrand, mostra-se nas vernissages artísticas, passeia-se pelo Chiado, compra os seus charutos na Havaneza, almoça no Zé das Caldeiradas, frequenta os teatros, elogia “les silhoutes” elegantes das artistas, faz a corte às prima-donas do belo canto e tem como particular “amigo” e manancial inspirativo, o todo poderoso Fontes Pereiro de Melo, que semanalmente caustica nas páginas do seu jornal.
Bordalo ainda não se tinha feito oleiro nas Caldas. No entanto faz cerâmica desenhada.
Somos avassalados por uma tremenda dúvida; ter-se-á Bordalo inspirado nas formas cerâmicas já existentes, ou projectou as formas que mais tarde haveria de modelar no plástico barro caldense?
Não nos interessam as explicações, sejam elas quais forem; interessa-nos sim que Rafael Bordalo Pinheiro, sempre “avant la letre”, lapisista exímio, oferece-nos, para nosso deleite e contentamento, o exemplar único de uma jarra bichada que antes de ser já o era.
Isabel Castanheira, na companhia de um forasteiro e do gato Pires, expressa a sua profunda admiração pela obra do Mestre
[2] Guilherme de Azevedo, jornalista e poeta, colaborador d’O António Maria (30 de Novembro de 1839, Santarém – 6 de Abril de 1882, Paris, França).
[3] Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, ilustrador, caricaturista, ceramista, industrial, professor, filho de RBP (20 de Julho de 1867 – 8 de Setembro de 1920).
[4] Pseudónimo utilizado por Rafael Bordalo Pinheiro na escrita de alguns textos do Álbum das Glórias.
[5] Álbum das Glórias, Março de 1882; Infante D. Augusto (1847-1889), filho de D. Maria II e D. Fernando.
[6] O António Maria, 1.ª Série, publicado entre 12 de Junho de 1879 e 21 de Janeiro de 1885.
Nota: este texto integra o catálogo, "Bordalo Contemporâneo e Contemporâneos com Bordalo", exposição Na Galeria Nova Ogiva, em Óbidos.
1 comentário:
excelente texto.
o Rafael, fazia-te uma vénia e um "boneco", como agradecimento, Isabel.
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